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A vida em sociedade é uma característica do ser humano, tida pelas ciências humanas como uma característica fundamental do domínio do homo sapiens sapiens sobre o planeta terra, sendo este consolidado há alguns milhares de anos.

Em decorrência da vida em sociedade, o ser humano acabou se agrupando em urbes, sendo que na pós modernidade a metrópole é o lugar comum deste, nascendo um sem número de conflitos sociais e econômicos, em especial no que tange ao uso e parcelamento do solo urbano, que precisa ser mediado por legislações específicas, a fim de possibilitar o desenvolvimento sustentável das cidades, sem se olvidar da centralidade do ser humano como sujeito de direitos.

Mesmo que a aglomeração humana em cidades tenha se dado como característica desde os primórdios daquilo que convencionasse chamar de processo civilizatório, entender a própria urbe como espaço social e detentora de normas que denotem um ideal de justiça a regular a conduta e os vínculos humanos, se deu a partir do desenvolvimento dos direitos de terceira geração, comumente vinculados ao ideal de fraternidade decorrentes da tríade revolucionária de liberdade, igualdade e fraternidade.

Como direito decorrente da dita terceira geração, o direito à cidade e ao meio ambiente sustentável acabam por deter características difusas, vinculadas à uma ideia de coletividade e que deve sobrepor o interesse coletivo ao interesse individual, ao passo de que os direitos clássicos de primeira e segunda geração, geralmente cuidam dos indivíduos como sujeitos de direitos, em suas garantias jus naturais.

Nesse contexto, exsurge a necessidade de regular a intervenção humana no uso e parcelamento do solo urbano, como corolário da regulação do conflito social por moradia, condições de trabalho, mobilidade, desenvolvimento econômico, proteção ecológica e afins.

Destarte, a inevitabilidade de se regular o direito à cidade fez nascer diversos normativos, que deveriam regular o fato social e dirimir conflitos, mas, ao contrário, acabam por gerar ainda mais contendas e altercações que, invariavelmente, desembocam perante à Jurisdição para suas respectivas resoluções.

É cediço que a normatização do uso e ocupação do solo urbano são de responsabilidade do ente federativo município, que em suas respectivas nuances e características devem regular o dito conflito por meio do que se assentou chamar de Plano Diretor.

Contudo, a característica do federalismo brasileiro de híper concentração legislativa e funcional perante à União Federal, fez com que, para além dos normativos constitucionais existentes acerca do tema em debate, nascesse o chamado estatuto das cidades (Lei 10.257/2001), norma geral que acabou por chancelar “direitos à cidade”, subtraindo dos municípios parte de seu poder de auto definição.

Tanto é assim que alguns conceitos hoje consagrados no que tange ao direito urbanístico decorrem de silogismo da lei geral ulteriormente mencionada, como os institutos da outorga onerosa versus o direito de construir e a necessidade do estudo de impacto de vizinhança, para se falar em apenas dois institutos criados pela lei federal que acabaram por, mesmo que genericamente, impor determinados regramentos aos municípios em seu direito de auto tutela do solo urbano como instrumento de suas próprias diretrizes de desenvolvimento.

Mesmo diante das amarras ditadas pela legislação alhures mencionada, os municípios brasileiros vêm desempenhando o seu papel e instituído seus competentes e correlatos Planos Diretores, alguns com maior outros com menor graus de sofisticação, mas todos se adequando a necessidade de implantação de tal regramento. Mas aqui reside o lado reverso da moeda da supracitada característica do federalismo brasileiro, uma vez que diante da ausência de processos legiferantes de qualidade e ausência de apoio técnico específico, os municípios acabam detendo dificuldades de assentar os interesses sociais em conflito, deixando de amalgamá-los de forma adequada, geralmente criando ainda mais conflitos em decorrência dos normativos que deveriam, ao contrário, pacificar as relações de conflito decorrentes do fato social.

Nessa senda, para além dos equívocos decorrentes do próprio processo legiferante de aprovação do Plano Diretor, sempre sujeito as pressões políticas, sociais, religiosas, econômicas, consuetudinárias, etc., nascem outras incorreções que invariavelmente acabam por repousar no texto da lei, cuja exegese passa a ser dúbia e, ao invés de esclarecer sobre o efetivo direito de construir, acaba por produzir celeumas e quirelas.

Em Florianópolis, por exemplo, a cartografia implantada em seu Plano Diretor é completamente eivada de vícios, sendo imprecisa e repleta de erros materiais, considerando, por exemplo, áreas particulares como públicas, sem qualquer regramento acerca da forma de correção de tal erro material, bem como traz em seu bojo o conceito de “áreas de urbanização especial”, que pelo nome deveriam ser destinadas ao desenvolvimento de regiões e novas centralidades, mas é tratada como verdadeira trava urbana ante os potenciais e índices construtivos, além de marcar “zonas especiais de interesse social” sem qualquer política urbana de habitação, regularização fundiária ou mesmo de investimento de políticas públicas daí decorrentes.

Linhas acima são apenas alguns exemplos das idiossincrasias do Plano Diretor da Cidade de Florianópolis, contudo há ainda algo ainda mais perverso no que tange ao direito à cidade, ao uso e parcelamento do solo, ao direito de construir e assim por diante. Diz-se isso porque os legisladores municipais resolveram vincular o dito mapa urbano com o mapa ambiental da cidade.

Ora, as vulnerabilidades ambientais e as restrições ao direito de construir daí decorrentes são fruto de legislações específicas e afeitas à matéria do direito ambiental e não podem ser confundidas com o direito urbanístico, uma vez que a hermenêutica da norma deve ser subsumida sempre de maneira sistêmica, ao passo de que a confusão dos institutos levará a indubitáveis conflitos que a própria norma, por sua deficiência já propalada, não consegue dirimir.

Um curso d’água natural, uma nascente, um corredor ecológico, um topo de morro, etc., existem fisicamente e estão lá postos, sendo desnecessário que o mapa urbano (no conceito de potencial construtivo) os delimite, uma vez que para a consecução do direito de construir será inexorável o correlato licenciamento ambiental, a quem tocará a prerrogativa de analisar a existência de vulnerabilidades ambientais a serem respeitadas, também decorrentes de direitos difusos e coletivos.

Um área de preservação permanente o será por suas características ecológicas e não porque assim a define o Plano Diretor, bem como se assim a define o referido normativo, mas não existem as características ambientais que imponham tal condição, faz-se necessário um mecanismo de sua desafetação.

Nesse sentido, o legislador municipal em Florianópolis acabou por criar uma verdadeira anomalia legislativa, ao misturar institutos jurídicos díspares que, ao invés de se complementarem, acabam por promover dualidades por vezes não conciliáveis e, pior, sem qualquer previsão normativa para sua resolução, impactando diretamente no desenvolvimento econômico sustentável da urbe.

Conforme vaticinado alhures, os erros cartográficos são gritantes no Plano Diretor de Florianópolis, o que implica em afirmar que muito do mapa ambiental constante na referida norma não espelham a verdadeira característica da área, sendo lugar comum a marcação de cursos d’água inexistentes, apenas para citar um exemplo.

Urge, portanto, a necessidade de revisão do Plano Diretor da Cidade de Florianópolis, para que este seja de fato um regramento a nortear o desenvolvimento econômico sustentável da urbe, conciliando interesses e apontando a diretriz de desenvolvimento, iniciando pela desvinculação do mapa urbano do mapa ambiental, mas também perpassando pela necessidade de eliminação de antinomias da própria norma, da criação de mecanismos de revisão de erros materiais, da criação de câmaras técnicas que possam revisar erros de zoneamento, entre tantos outros.

Gabriel Mourão Kazapi
OAB/SC 23023